quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A problemática de se colocar o Espiritismo como religião



O Espiritismo, segundo Kardec, só é religião na acepção filosófica do termo, dentro de uma definição que ele mesmo dá, qual seja, a criação de laços que estabelecem a fraternidade  e a solidariedade, a indulgência e a benevolência entre as pessoas[1]. Nesse mesmo sentido, ele diz que, em tal significado, poderia ser dizer "religião da amizade" e "religião da família". Jamais a Doutrina Espírita pode ser vista como religião na acepção usual do termo, pois que isso implicaria em dizer que ela tem dogmas, uma estrutura sacerdotal, cultos e práticas exteriores definidas que se repetem invariavelmente cuja observância é obrigatória, e uma verdade produto de revelações divinas vindo diretamente de Deus a um homem, e não do trabalho de análise, comparação e categorização das informações dadas não por um, mas por diversos Espíritos. Por isso, pode-se dizer que a ciência espírita não tem nada, absolutamente nada do que as religiões, tal como conhecidas e entendidas histórica e culturalmente nos povos, tem.

          Além disso, dessa visão equivocada acerca do que é o Espiritismo, surgem consequências que atrasam o seu avanço e sua interação com o mundo e com as religiões, como o afastamento da aliança que ela veio fazer entre as ciências e as religiões, a aceitação de qualquer coisa que escrita ou dita por certos Espíritos, e a estagnação da essência da Doutrina, do que ela é mesmo, uma ciência.
           
            Pelo fato de ser encarada como mais uma religião, ela é automaticamente transformada em "concorrente" das outras, impossibilitando o diálogo com os diversos credos religiosos, o que é contrário ao codificador, pois que ele mesmo fala de espíritas de várias crenças religiosas, na Revista Espírita de maio de 1859 [2]:
"Melhor observado desde que se vulgarizou, o Espiritismo vem lançar luz sobre uma porção de problemas até aqui insolúveis ou mal resolvidos. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião e a prova é que conta como adeptos homens de todas as crenças, os quais, nem por isso, renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto; protestantes de todas as seitas; israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, menos materialistas e ateus, porque essas ideias são incompatíveis com os princípios espíritas." (negrito nosso)


            Não somente isso, no mesmo artigo[2], referindo-se à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, diz que "Ela tem um caráter tão diverso que os seus estatutos proíbem tratar de questões religiosas."

              Assim, caso fosse realmente uma religião, como existiriam membros de tantas convicções diferentes presentes na Sociedade,  e por que seria proibido discutir-se questões religiosas lá?

            Por outro lado, se propagar que o Espiritismo é religião torna refratários a estudá-lo muitos pesquisadores e homens de ciência sérios, que pensam automaticamente no significado usual da palavra, afastando-o dos olhares da academia, por cair na ideia de que ele se baseia em crenças não racional e cientificamente fundamentadas, e não passíveis de avaliação lógica, não merecendo a atenção dos cientistas. Assim, como poderia a ciência espírita fazer seu papel de unir os dois, quando é propagandeada como algo que não é?

          Outro ponto importante é que, colocando-se a Doutrina como religião, facilita-se a criação de algo extremamente comum no seio do movimento, que são médiuns e Espíritos inquestionáveis, dos quais tudo o que vêm é considerado Espiritismo (mesmo que atente contra a lógica e o ensinado por ele) e, sendo algo que veio deles, é aceito sem exame sério,  sendo visto com maus olhos quem aponte os erros (alguns graves) cometidos, só por que veio de tais ou quais encarnados ou desencarnados, criando barreiras para a análise e refutação de suas ideias em muitos meios, ainda quando contrárias à codificação.
           
            De observância capital também é o método de Kardec, que consistia em passar tudo pelo crivo da razão, que exige seja examinado tudo o que venha dos Espíritos, sejam quem forem; e também a concordância, segundo a qual, para se tirar qualquer conclusão sobre algum assunto, deve-se averiguar se as informações dadas por diversos Espíritos, em lugares diferentes e através de médiuns estranhos uns aos outros combinam. Para melhor elucidar, seguem dois trechos, um de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, item II - Autoridade da Doutrina Espírita[3], e o outro da Revista Espírita de março de 1864 - Da perfeição dos seres criados [4]:

            "O primeiro controle é, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que vem dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura."

          "Um princípio, seja qual for, para nós só adquire autenticidade pela universalidade do ensinamento, isto é, por instruções idênticas dadas em todos os lugares por médiuns estranhos uns aos outros sem sofrer as mesmas influências, notoriamente isentos de obsessões e assistidos por Espíritos bons e esclarecidos."

            Olhando-se a ciência Espírita como religião, esse cuidado e esse método ficam esquecidos, até mesmo por incompatibilidade, pois na ciência é necessário o controle e métodos de comprovação, enquanto naquela tudo o que for dito por determinado ser é aceito como verdade e não precisa (e nem deve) ser examinado, confrontado. O argumento da autoridade ("é assim por que ele/ela disse") substitui o da comprovação científica, que demanda experiências, esforços, perguntas sobre os pontos duvidosos e, desse modo, abandona-se a essência mesma do Espiritismo. O abandono de tal método (que na prática hoje é simplesmente ignorado, senão na totalidade, pelo menos na maioria dos casos) fez com que houvesse uma paralisação no avanço da ciência espírita nos últimos 147 anos, pois que sem pesquisa rigorosa, não há como dar andamento a ela.

         Juntamente com todos os argumentos acima citados, associe-se o fato de que na leitura da Revista Espírita (que faz parte das obras fundamentais), encontra-se o codificador referindo-se ao Espiritismo o tempo todo como ciência, refutando diversas vezes a ideia dele como religião. Assim, só por que, em um único artigo, e com um conceito que, se adotado, transforma em religião vários outros institutos que não são entendidos vulgarmente como tal (família e amizade, por exemplo), não significa que exista, de fato, um tríplice aspecto.

             Diante de todo o exposto, pergunta-se: quem realmente pensa, quando se fala em religião, como ela sendo simplesmente um laço moral, e acredita que amizade e família também são religiões? O que se vem automaticamente em mente, não é a ideia de algo estruturado, hierarquizado, com cultos e formas exteriores, nos quais existe uma verdade que veio diretamente de Deus e que, portanto, não pode nem deve ser questionada, e não pode modificar-se? Tal descrição é totalmente incompatível com o que é a Doutrina Espírita.
           
            Sendo assim, frente à tudo o que foi discorrido, conclui-se que colocar o Espiritismo como religião, e o divulgar como sendo uma, não somente é anti-kardequiano, como também prejudica a marcha da própria Doutrina.


Referências:


[1]A. Kardec. Revista Espírita, dezembro de 1868. Disponível em http://ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6250&&idioma=1. Acesso em 13/07/2016.
[2]A. Kardec. Revista Espírita, maio de 1859. Disponível em http://ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=2694&&idioma=1. Acesso em 13/07/2016.
[3]A. Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Disponível em http://ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=2870&&idioma=1. Acesso em 13/07/2016.
[4]A. Kardec.  Revista Espírita, março de 1864. Disponível em http://ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=5587&&idioma=1. Acesso em 13/07/2016.

Um comentário:

  1. Foi o próprio Kardec quem diz que o espiritismo é uma religião, embora muito diversa do que o vulgo considerar como uma religião.

    Depois de estudarmos doutrina, de nos aprofundarmos nos conhecimentos sobre a vida dos espíritos e a relação deles conosco, o que o espiritismo espera de nós?

    Será que trata-se de uma ciência que nos faculta conhecer a realidade do mundo espiritual?

    Quando tratamos o espiritismo somente como uma ciência, ou um composto de ciência e filosofia, tiramos o tríplice aspecto fundamental da doutrina, que se baseia na religião, filosofia e ciência.

    Entendo que o espiritismo é uma ciência filosófica e com consequências religiosas.
    Isso significa que no final das constas, o que a doutrina espera de nós é sim um pensamento religioso, como disse Kardec, com uma comunhão de pensamentos dentro da unidade moral no bem que emana de Deus.

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